É IMPORTANTE SABER COM QUEM DORME CONDOLEEZZA?
Mário Bettencourt Resendes
provedor@dn.ptEm Setembro de 2005, o jornalista australiano John Pilger, famoso e
premiado pelos seus trabalhos de investigação, sobretudo na televisão,
editou uma interessante colectânea, que reúne um conjunto de
reportagens que "fizeram História".
Sob o título
"Tell me no lies - Investigative Journalism that changed the world",
Pilger transcreve e comenta textos que vão desde Dachau, em 1945, até
matéria bem mais recente, relacionada com a invasão e guerra no Iraque.
No livro, não há apenas política, guerras e geoestratégia. Lá estão,
também, escândalos conhecidos, situados em outras áreas da vida
quotidiana - económica, científica e social. Curiosamente, não se
encontra uma única reportagem que tenha a ver com a vida íntima de
figuras públicas, o cruzamento, muitas vezes de alto risco, entre
política e sexo. E que, desde tempos remotos, mudou o curso da
História, justificando, nas décadas mais recentes, de existência de uma
imprensa agressiva, competitiva (e também abusiva...), milhares e
milhares de trabalhos de suposto "jornalismo de investigação".
Feito este intróito, será que se justificava o género de abordagem
feita pelo DN (pág. 29 da edição de 17 de Setembro) a um livro
recentemente publicado nos Estados Unidos sobre a vida de Condoleezza
Rice, responsável pela política externa norte-americana? Sob o título
"Condoleezza Rice comprou casa com outra mulher", o jornal refere-se ao
livro de Glenn Kessler, correspondente diplomático do
The Washington Post (The Confidante: Condoleezza Rice and the Creation of the Bush Legacy).
Numa pequena notícia, publicada a duas colunas, em baixo de página,
ilustrada com uma foto da secretária de Estado, o DN dedica duas dúzias
de linhas apenas à especulação sobre o comportamento íntimo de Rice,
alimentada pela revelação da compra de uma casa em parceria com uma
amiga, Randy Bean, e uma terceira pessoa, um "professor de Stanford e
gayassumido", que "vendeu depois a sua parte às duas amigas". Citando o
autor, mas esquecendo as aspas da regra, a notícia termina com a dúvida
sobre se "haverá mais alguma coisa, para além da amizade, entre as
duas".
O leitor António José Matos Marques, em mensagem dirigida ao provedor,
não esconde o seu descontentamento pela opção do jornal. Salienta,
nomeadamente, que o facto relatado "não tem qualquer relação com a
actividade política, pública, de Rice" e acrescenta que "não se lembra
de ver citadas declarações de tipo conservador quanto aos
comportamentos sexuais e/ou homofóbicas, pelo que não poderá estar em
causa uma insanável contradição entre a postura pública e a vida
privada de Rice" - e neste ponto a memória do provedor coincide com a
do leitor.
Lumena Raposo, editora adjunta do Internacional e responsável, nesse
dia, pela secção, justifica-se : "O facto de Condoleezza Rice ter
comprado uma casa com outra mulher é público a partir do momento em que
é referido no livro de Glenn Kessler (...) e por ele discutido num
programa de rádio, como é referido na notícia." A jornalista
penitencia-se, por outro lado, pela ausência de aspas, já referida pelo
provedor, na declaração que termina a notícia.
Na matéria aqui em apreço, o provedor não tem particular dificuldade em
chegar a uma conclusão. Respondendo directamente ao título da coluna,
poderia ser importante saber "com quem dorme Condoleezza" se o seu
comportamento íntimo entrasse em flagrante contradição com posições
anteriormente assumidas. A vida pública implica hoje, para os seus
protagonistas, neste domínio, uma coerência compreensível. A resposta
poderia também ser positiva se, por exemplo, de uma relação íntima
resultasse um qualquer tipo de favorecimento indevido ou, no limite,
uma situação de potencial risco para a chamada segurança nacional
(recorde-se o caso de John Profumo, um ministro britânico que, nos anos
60, partilhou os lençóis de uma mulher com um espião soviético, um
escândalo que acabou por provocar a queda do Governo).
Ora, tanto quanto é do conhecimento público, nenhum destes cenários tem
a ver com a amizade entre Rice e Randy Bean. Mais importante ainda é o
facto de o DN ter passado completamente à margem dos conteúdos
fundamentais do livro, onde se faz uma análise das políticas de Rice e
da sua "habilidade" em jogar a carta racial "num mundo de homens
brancos de meia-idade".
Não se sugere que o jornal ignorasse a polémica "picante" ( por sinal
já estranhada por Kessler em entrevista posterior: "De maneira nenhuma
especulei sobre a natureza deste relacionamento no livro"); na opinião
do provedor, o assunto ficaria bem resolvido com uma referência
secundária, numa peça onde tivessem sido privilegiados os comentários e
as informações políticas incluídas na obra, bem mais interessantes e
adequados, pelo menos neste caso, a uma abordagem típica de um jornal
de referência. Por maioria de razão, discorda-se da chamada de primeira
página ("Sexualidade da secretária de Estado Condoleezza Rice tornou-se
polémica"), "da responsabilidade da Direcção", como recorda Lumena
Raposo.
Em conclusão, trata-se de um episódio que não figurará, por certo, numa
eventual antologia dos "grandes momentos de jornalismo" da história do
Diário de Notícias.