CINCO ANOS DEPOIS...
Mário Soares 1.
O tempo passa a correr.Voa, como se costuma dizer. Há cinco anos, contados dia por dia, a
partir de 16 de Março de 2003, um dia triste, que por sinal também foi
um domingo, realizou-se nos Açores a chamada Cimeira da Vergonha, em
que um Presidente da República, George W. Bush, então o "homem mais
poderoso da Terra", e três primeiros-ministros europeus, Tony Blair,
José Maria Aznar e José Manuel Durão Barroso, o anfitrião, decidiram,
unilateralmente, com falsos argumentos, intencionalmente forjados,
invadir o Iraque e, em consequência, destruir o precário equilíbrio e
até incendiar, em boa parte, o Próximo Oriente.
Fizeram-no, ignorando deliberadamente a ONU - e o necessário aval do
Conselho de Segurança -, desrespeitando, assim, a Carta das Nações
Unidas, a que estavam obrigados, os apelos repetidos e angustiados do
Papa, João Paulo II, e, quanto aos três europeus, dividindo,
objectivamente, a União Europeia e esquecendo-se, obviamente, de ouvir
os partidos, os parlamentos e a respectivas opiniões públicas.
Por que razão - ou razões - o fizeram? A história, nesse aspecto, está
por fazer. Mas será feita, não tenhamos dúvidas, à saciedade, sobretudo
após o fim político de Bush, sem honra nem glória, deixando atrás de si
mortes, sofrimentos, destruições, crises políticas, financeiras e
económicas... Um balanço trágico! Uma divisão de águas profundíssima na
opinião pública mundial.
Quanto aos europeus, o que os moveu foi principalmente a subserviência
perante o "patrão americano" e o deslumbramento - ou cálculo, que se
revelou falso - em relação à força militar, sem paralelo, de que Bush
se vangloriava. Mas para que lhe serviu? Que respondam os mortos, no
seu silêncio - com o rasto de memórias que deixaram, e que está a
contaminar a América - e os vivos que aí estão para contar, os crimes,
os assassínios, a tortura, as destruições, as pilhagens, os atentados
aos Direitos Humanos, que se fizeram à sombra da arrogância e da
ganância de uma falsa elite
neocon,
fanática e ultra-reaccionária, que pensou dominar o mundo... Talvez um
dia - quem sabe? - o Tribunal Penal Internacional se lembre de os
julgar, pelo mal que fizeram à Humanidade.
Passaram cinco anos que mudaram o mundo, para muito pior. Anos duros,
sombrios, sem perspectiva. Em que os grandes valores pareciam soçobrar.
Sobretudo no Ocidente, que perdeu prestígio, poder e a imagem de um
humanismo universalista que antes o caracterizava. Mas há já reacções
anunciadas, que se esboçam. E que implicam, necessariamente, rupturas.
O mundo não pára. Haverá reformas profundas - esperemos - para evitar
revoltas incontroláveis e anárquicas, que as pessoas comuns reclamam e
têm razões em reclamar. Não é possível calar a voz dos povos
desesperados, onde as liberdades e os Direitos Humanos sejam
respeitados!
2.
Elvas.Uma cidade raiana, com Badajoz à vista, em franco progresso, inaugurou,
no passado sábado, dia 15, o seu Museu de Arte Contemporânea, com a
presença do novo ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro. As
instalações são magníficas, reconstruídas como foram, com inteligência
e gosto, num velho palácio, sem o alterar no fundamental.
A exposição inaugural, organizada pelo professor e organizador de eventos culturais João Pinharanda, teve como tema principal
A Defesa e o Ataque.
Entre esculturas e telas, destacam-se onze belíssimas e enormes
fotografias, a cores, feitas por Augusto Alves da Silva, sobre a
paisagem idílica da base das Lajes (Açores), no dia 16 de Março de 2003
entre as 07.00 e as 19.00. As imagens documentam a descida dos aviões
de Bush, Blair e Aznar, aonde foram ao encontro de Durão Barroso, para
assistirem à Cimeira dos Açores.
A paisagem açoriana, com o largo oceano ao fundo e o silêncio e a paz
que se adivinha do verde que envolve o aeroporto, forma um imenso
contraste com os horrores que se discutiram e preparavam, à porta
fechada, para uma guerra que ia começar, que ainda não acabou e que
marcaria tão negativamente - como os atentados de 11 de Setembro - o
início do século em que vivemos...
3.
A Duquesa Vermelha.Como alguns semanários portugueses noticiaram, morreu, na passada
sexta-feira, no seu castelo de Sanlúcar de Barrameda, na foz do rio
Guadalquibir, Luísa Isabel Alvarez de Toledo y Maura, duquesa de Medina
Sidónia e marquesa de Villafranca, uma dos "grandes" de Espanha.
Era uma personalidade muito singular. Tendo nascido no Estoril, em 1936
- no ano fatal do golpe clerical-franquista contra a II República
Espanhola, que se transformaria em cruenta guerra civil (1936-39) -
numa família da mais alta aristocracia, aliás muito ligada a Portugal
(Luísa de Gusmão, mulher de D. João IV, pertencia à linhagem dos Medina
Sidónia), tornou-se em adulta republicana e anarquista, depois de um
casamento infeliz, que desfez, assim que lhe foi possível.
Pela parte da mãe era neta de António Maura, outro "grande" de Espanha,
que foi ministro da República e avô em linha recta do intelectual e
escritor espanhol Jorge Semprun, ministro da Cultura de um dos governos
de Felipe Gonzalez. Conheci a duquesa de Medina Sidónia, quando se
encontrava exilada em Paris, depois de ter estado presa nos cárceres
franquistas, para evitar novas prisões. O Maio de 68 ainda estava
próximo e o ar que se respirava em Paris, em pleno gaullismo, era de
grande liberdade e não só política.
Lembro-me que a conheci num jantar do Centro Republicano de Paris, em
homenagem ao político catalão Companys, fuzilado pelos franquistas,
onde se encontrava também a sua viúva. Nos arquivos da Fundação Mário
Soares deve ainda haver uma fotografia desse evento onde eu figuro,
sentado ao lado da Duquesa Vermelha. Falámos muito nessa noite.
Naturalmente de Espanha, de Portugal e das respectivas libertações.
Conspirámos um pouco. E ficámos amigos. Vimo-nos ainda algumas vezes em
Paris. Depois da Revolução dos Cravos, visitou--me em Lisboa, não sem
reconhecer que, finalmente, Portugal se tinha libertado da ditadura
primeiro do que Espanha!
Mas a transição espanhola veio logo em 1976-78. A duquesa de Medina
Sidónia regressou a Espanha, entretanto. Filiou-se no PSOE. Participou
em manifestações. Distribuiu terras suas às cooperativas de camponeses
da Andaluzia. E, sobretudo, zangou-se com muita gente, porque era de
feitio conflituoso, frontal, dizia o que pensava, sem papas na língua,
e era muito senhora do seu nariz.
Cansada da política, refugiou-se no seu castelo de Sanlúcar de
Barrameda e meteu-se, furiosamente, a organizar o seu valiosíssimo
arquivo histórico, com a colaboração da sua inseparável amiga alemã,
Liliana, com quem vivia em união de facto, perfeitamente assumida. A
última das suas originalidades consistiu em casar
in articulo mortis, coerentemente, com a sua amiga Liliana, a quem deixou os seus bens.
Um dia, era eu Presidente, telefonou-me para Belém. Disse-me que se
tinha zangado com o reitor da Universidade Complutense de Madrid, que,
aliás, era um homem consensual e pacífico, que conheci bem. Queria
estabelecer um contacto com a Universidade de Coimbra, cujo prestígio
conhecia desde sempre. Pediu-me, numa palavra, para fazer o contacto.
Assim fiz. Contactei o meu amigo, reitor de Coimbra, Rui Alarcão, e
disse-lhe do que se tratava. Ele ficou francamente interessado. E daí,
partimos os dois, de automóvel, para Sanlúcar de Barrameda, onde
passámos uma noite e jantámos com a Duquesa e a sua inseparável amiga e
conversámos longamente. Uma noite divertida e encantadora.
Acho que o acordo não chegou a concretizar-se. Infelizmente. Não sei
bem porquê. Mas dessa noite - e da nossa conversa - ficou-me uma
recordação indelével. Lembro-me que referiu e mostrou um velho
relatório que encontrou nos seus arquivos, de um espião de Felipe II de
Espanha, que assistira à batalha de Alcácer-Quibir e que assinalava ao
Rei que D. Sebastião não tinha morrido e fugira. Lembrei-me de um
grande romance de Aquilino Ribeiro - de pura ficção, Aventura Maravilhosa ,
que narra a fuga de D. Sebastião, depois da batalha, até chegar, após
imensas peripécias, ao Escorial, para reclamar o trono ao seu tio
Felipe II. Que o reconheceu e o mandou matar.
Será que os sebastianistas teriam alguma razão ao afirmar, naqueles
tempos, que D. Sebastião não morrera em Alcácer-Quibir?! Eis um enigma
que alimenta há séculos a nossa História e a imaginação de muitos
portugueses.