Vida nova na Costa da Morte
Maria Cláudia Monteiro
Apaziguados, os galegos deixam-se embalar
pela imposição de calendário e voltam a falar do "Prestige". Há muito
que o deixaram de fazer, amaciados pela normalidade dos dias. Cinco
anos depois, as palavras soam distantes, desapaixonadas, mesmo quando
recordam o manto negro que cobriu a Costa da Morte e lhes encheu de
medo a alma. "Querem passar a página, olhar para o futuro". Podem
fazê-lo. Aparentemente, nada mudou.
As gentes na Galiza vivem esquecidas das consequências do derrame de 77
mil toneladas de fuelóleo nas águas que lhes sustentam a vida.
Esqueceram-se porque "o Governo portou-se bem, ninguém ficou mal
servido" e o mar continua generoso. Joaquim Soares, português tornado
galego de Muxía por casamento, toma como suas as lides da vida dos
pescadores. "A vida está boa. Há peixe, há dinheiro", explica. "Em
França, é que ainda ninguém recebeu nada pelos prejuízos".
Nas vilas de pescadores da costa, esta realidade basta para certificar
o regresso à normalidade. "Esperávamos ficar destroçados", conta Andrés
Monteagudo, da Confraria de Pescadores de Aguiño. "Mas o mar é sábio e
de cada vez que se enfurece também ajuda a limpar".
Na substância, a Galiza é hoje uma região muito diferente. Nos últimos
dois anos, inverteu uma tendência de décadas cresceu acima da média
espanhola, a inflação foi mais baixa, criou mais postos de trabalho,
convergiu mais. No esboço do que parece ser a recuperação económica de
uma região tradicionalmente deprimida, o desastre do "Prestige" surge
praticamente como nota de rodapé. "A tragédia não teve efeitos
económicos permanentes, nem a médio, nem a longo prazo", assegura
Martin Moreno, professor de Teoria Económica na Universidade de Vigo.
Heranças da maré negra
Determinante para a aceleração económica foi a mudança política,
precipitada pelos ânimos exaltados pela maré negra. A derrota de Manuel
Fraga Iribarne nas eleições de 2005, ao fim de 16 anos à frente dos
destinos da região, é tida como a grande mudança pós-"Prestige" e o
motor da retoma económica. "Mudou-se o modelo de crescimento da
Galiza", explica o professor universitário da faculdade de Ciência
Económicas e Empresariais.
Há seis trimestres consecutivos que a Galiza cresce acima da média
nacional. "Nós próprios estamos surpreendidos", assegura Martin Moreno.
A dinamização da indústria garantiu a criação de milhares de postos de
trabalho, traduzidos na taxa de desemprego mais baixa da história da
Galiza. Os projectos do "Plano Galiza", anunciados no ano seguinte ao
"Prestige" com o objectivo de compensar a região pelos danos, ainda não
saíram do papel. "Não passam de anúncios e de fotografias", considera o
professor de Economia.
Contas do passado
"Tudo o que venha é bom". As palavras são de Tivo, capitão de um barco
de pesca de Muxia. Toda a gente o diz, por todo o lado, sem valorizar
os discursos enformados de promessas políticas. "Será por todos os anos
que não recebemos nada". Os galegos sabem que o poder central tem
contas a acertar com a Galiza. Esperam-no, desvalorizando
orgulhosamente cada deslocação política à "zona zero" da catástrofe,
cada intervenção. Desvalorizam, cobrando.
Como cobraram durante os dias da maré negra. Dramatizando, admitem
agora. "Houve alguma dramatização. A isso fomos obrigados pelo silêncio
de Madrid", admite Nacho Castro. Talvez assumam agora um exagero, por
constatarem a abissal distância entre o que temeram e a realidade
tranquila de hoje. São muitos os que duvidam dos dias de raiva e de dor
vividos debaixo do manto preto do "Prestige".
Da maré negra, a Galiza herdou a capacidade e um novo gosto de
mobilização da sociedade civil. O espírito do movimento "Nunca Máis",
que encabeçou as denúncias ao silêncio do Governo de Aznar durante os
dias do desastre e as reivindicações de mais meios para a Galiza,
mantém-se em alerta. Fala-se de um "um despertar de consciência" que
nunca mais adormeceu. "Foi por causa da mobilização pelo "Prestige",
que anos mais tarde houve uma resposta tão pronta à guerra do Iraque e
aos incêndios", considera Nacho Castro. "É inquestionável a grande
movimentação social e o movimento de voluntariado nascidos com o
"Prestige", concorda Martin Moreno.
O caso "Prestige" manchou mas sarou
A 13 de Novembro de 2002 o navio
"Prestige" emitia o primeiro sinal de alerta. O petroleiro - construído
em 1976, com um peso de 42 mil toneladas e que transportava 77 mil
toneladas de fuelóleo pesado - haveria de partir-se ao meio a 19 de
Novembro, frente à costa da Galiza, a 260 quilómetros ao largos das
ilhas Ciés. Desde o primeiro momento de dificuldades, percorreu 437
quilómetros. O afundamento do "Prestige" provocou a maior catástrofe
ambiental de Espanha levando para a Costa da Morte quase 400 mil
voluntários, que ajudaram na limpeza das praias, operação que decorreu
ao longo de três meses. Apesar da ameaça, Portugal acabou por escapar à
maré negra. O petroleiro estava a poucas milhas do Cabo Finisterra
quando emitiu o primeiro SOS. A embarcação, proveniente da Letónia e
com destino a Gibraltar, confrontava-se com uma séria tempestade. Nas
horas que se seguiram cinco rebocadores rodearam o petroleiro e
resgataram 27 tripulantes. O casco quebrado começou a derramar milhares
de toneladas de fuelóleo pesado e a indefinição sobre o que fazer com o
"Prestige" deu lugar a uma imensa maré negra. A 19 de Novembro, o
"Prestige" acabou por partir-se ao meio e afundar , permanecendo até
agora no fundo do mar, a 3600 metros de profundidade. Os prejuizos
estimaram-se em 400 milhões de euros.