Bairro da lata
Dharavi, como toda a Índia, tem um pé na Idade Média e outro no séc. XXI. VISTOS da janela do avião, os bairros da lata são uma mancha azul na paisagem, hectares de oleados encharcados pela monção e rebrilhando na chuva. Uma sensação de conforto é dada pelo interior do Airbus, onde não chove e não existem pobres, a temperatura do ar está regulada e tudo está previsto para evitar surpresas desagradáveis.
Dentro de um avião sabemos os rituais, quantos minutos depois da descolagem passará o carrinho das bebidas, quantos minutos antes da aterragem apertaremos os cintos, quantos graus estão no exterior, a altitude, a hora da chegada. Lá fora, antes da pista, nos bairros da lata, tudo é difuso e distante, como qualquer coisa que não devesse estar ali.
Mumbai tem ambições de tornar-se Xangai, quando o PIB da Índia exceder o dos Estados Unidos, ou mesmo antes, ninguém sabe, de embriagados que estão os indianos pelos fumos do optimismo e da prosperidade.
E que fazer com aqueles bairros da lata, onde vivem quase 8 milhões de seres humanos, dois terços da população da metrópole do século XXI? Toda a gente tem ideias sobre o que fazer com os bairros da lata, e algumas dessas ideias já começaram.
Os que são pela demolição e o caterpillar, acham que desalojar e demolir, limpar e dar lugar a novos edifícios, é a preocupação principal e por isso não perdem tempo com questões sociais.
Os habitantes assim despedidos terão apenas que procurar outros dois palmos de terra onde viver e morrer, comer e defecar, e engrossar as legiões miseráveis que aprenderam a viver na destituição.
Outros são pela reconstrução, realojando os miseráveis em torres de apartamentos, construção em altura dando a cada família, 10, 20, 30, 50 pessoas, uns palmos de cimento e uma casa de banho.
O problema é que os "das barracas" não estão muito interessados em casas de banho ou em privacidade, habituados a defecar na rua e a esperar que a água tudo cubra, indiferente perante as castas e o pudor.
Outros ainda, os pessimistas históricos, acham que as barracas ficarão lá para sempre, e se forem mudadas aparecem noutro lugar, porque ninguém sabe como transformar milhões de miseráveis numa classe média europeia ou americana, com televisões, refeições certas, consumo e impostos. Donde, para estes, Mumbai nunca será Xangai.
Apesar dos programas, dos sonhos, dos visionários e dos milhões gastos a fingir que o problema tem solução no século XXI, o século em que a Índia passará à frente dos Estados Unidos.
Do avião, vendo aquelas barracas de bambu e plástico, lixo e madeira, restos e dejectos, duvida-se deste futuro grandioso.
Um passageiro de 23 anos, classe média alta, e toda a classe média ali é, por definição, alta, confessa que as barracas são para deixar estar e que a questão social é absurda, uma mania do Ocidente.
Tal como dentro do avião existem uma classe Executiva e uma Económica, também na vida existem os que não podem viajar na frente do aparelho e beber champanhe, neste caso a maioria da população.
A prática parece dar-lhe razão, se pensarmos que os habitantes de Dharavi, a mais central favela de Mumbai, com um milhão de pessoas, e que teve durante uns anos a honra duvidosa de ser considerada a maior favela da Ásia (que terá perdido para Orangi, Karachi, Paquistão), não vêem com bons olhos o plano de um arquitecto para os retirar dali e colocá-los em prédios com "amenidades".
Quem me contou a história foi um inglês encontrado no Café Leopold, em Colaba. Dharavi pode ser visitada através de uma agência de viagens especialista em tours da favela, a pé ou de carro. Real Tours, ou algo que o valha, uma britânica ideia.
Uma dúzia de dólares e podia andar a pé na 90 Feet Road, a mais larga avenida de Dharavi e assim chamada por causa da sua largura, ou na 60 Feet Road, a segunda avenida mais importante do conglomerado. No meio passa um canal de água suja, que serve para tudo. Dizem que a água dos canais de Dharavi ficou doce de tanta defecação.
Hoje, graças aos truques e à humana invenção quase todas as barracas têm uma torneira de água. E televisão, onde podem absorver os filmes de Bollywood e os concursos idiotas da globalização, além dos gurus de serviço nos canais.
Dharavi, como toda a Índia, tem um pé na Idade Média e outro no século XXI. Os habitantes da favela, que começou por ser um mangal, vieram de outras regiões da Índia, Uttar Pradesh, Gujarat, acossados pela fome ou as inclemências climáticas.
Outros proletarizaram depois da saída dos ingleses, atirados para a favela pela mudança de regime. Dentro de Dharavi fervilha uma actividade e quase todos os jovens trabalham.
Uns são programadores de computadores e outros são operários dos têxteis, uns são oleiros (tradição das manufacturas de Dharavi) outros são gangsters locais.
Dentro das barracas, em 15 ou 20 metros quadrados, vivem 15 ou 20 pessoas. Um mundo de sonhos de revolta ou de grandeza, camuflado pelo conformismo e a resignação hindus, que prefere acreditar em Lord Ganesh, o deus-elefante que safa quem se mete em sarilhos.
Três quilómetros quadrados para um milhão de pessoas, um mundo a anos-luz dos salões de oiro do Taj Mahal, o hotel que o industrial parsi Tata mandou construir quando percebeu que lhe barravam a entrada nos hotéis do império britânico.
Clara Ferreira Alves - Expresso
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Qui Set 20, 2007 4:44 am