O que resta da EXPO
DE INVERNO Lisboa é uma cidade mais triste do que o habitual. E mais pobre. O azul-ferrete do céu fica enevoado e opaco e põe nas caras e nas ruas e nos prédios e árvores uma sombra de decrepitude. Ficamos todos mais velhos, nós e a cidade. Se me perguntarem o que falta a Lisboa, direi que lhe falta alegria.
Lisboa é como um espírito irritado. Não existe uma avenida, um caminho, uma rua, um passeio, por onde se possa andar sem levar com a cacofonia dos carros e o zumbido do trânsito, uma distribuição constante de pessoas pela cidade, para dentro e para fora da cidade, como se Lisboa fosse um apeadeiro ou uma estação.
Passar um fim-de-semana em Barcelona, que neste momento fica mais barato, em "low cost", do que ir ao Algarve a pagar portagens, dá-nos uma visão do que é que em Lisboa correu mal depois da EXPO.
Barcelona era uma cidade escura e operária no final do século XIX. No século XX continuou a ser uma cidade escura e operária mas pairava no ar um perfume de boémia e vida artística que aguentou a cidade nos períodos menos brilhantes.
Com os Jogos Olímpicos, Barcelona mudou e mudou para sempre. Aproveitando ao máximo o dinheiro gasto nas infra-estruturas e modernização da cidade, dos acessos aos complexos arquitectónicos, das largas avenidas às ruas estreitas da beira-mar, da alta à baixa, Barcelona valorizou a relação com o Mediterrâneo.
O porto de Barcelona, com os seus contentores e navios, guindastes e gruas, dragas e rebocadores, não está dentro da cidade e não desenha as linhas que definem o horizonte da cidade, como faz o Porto de Lisboa, muito menos se arroga o direito de esconder o rio dos olhos dos lisboetas e de os privar da melhor coisa que têm, o Tejo e tudo, como no verso de Pessoa. Os funiculares e teleféricos de Barcelona ampliam o efeito.
O caminho entre a EXPO e o Terreiro do Paço, que se chamou "caminho do Oriente" e se previa rasgado e aberto, está novamente fechado e vedado. Arame farpado, contentores, armazéns, montanhas de areia e um rio proibido.
A EXPO é um subúrbio fisicamente desligado da cidade, não existe continuidade estética. Na zona de Belém, o Porto de Lisboa resolveu, no que chama projecto de "requalificação", construir um mamarracho, não muito longe dos Jerónimos e da Torre de Belém, que é um atentado à paisagem e que tapa o rio.
Eu espero que o monstro seja demolido, como deve ser.
Espero também que esta Câmara meta o Porto de Lisboa na ordem, o que nenhuma administração da cidade até hoje conseguiu fazer, e espero que o Governo perceba que, se não libertar o rio mata a cidade.
Caminhando então para a EXPO, verificamos que a marina, projecto no qual foram investidos milhões, entrou em falência. Nem restaurantes, nem cafés, nem barcos, nada. Tudo está deserto e o vento faz estremecer a água do rio e sopra nos pontões que destilam abandono e melancolia.
Junto ao Oceanário, o deserto avança. Raros e maus restaurantes, quase nenhumas esplanadas, e uma frente ribeirinha desaproveitada. Ao optar por instalar um centro comercial gigante no meio do recinto, isto tinha que acontecer.
O centro comercial sugou toda a vida das ruas e das imediações, e toda a gente converge para a luz artificial e as lojas e restaurantes, deixando de lado um espaço ao ar livre que está vazio e rodeado de casas.
Quanto às casas, a arquitectura é má, às vezes péssima, e não transcende a arquitectura de subúrbio com "upgrade" para burgueses.
Suponho que não era nada daquilo que António Mega Ferreira tinha na cabeça quando imaginou a EXPO.
Como sempre, do império a um recinto de feira, somos maus no "pós", no depois, no que fica.
O que ficou, na zona da marina, é uma vergonha nacional. E nem vale a pena falar do Pavilhão de Portugal de Siza Vieira, ninguém sabe o que fazer com a jóia da coroa.
Ficou-nos aquela avenidazinha com repuxos, um pouco ridícula, atravessada por funcionários em hora de almoço e algumas crianças de escolas que põem a única nota de alegria na depressão urbana. Uma massa apressada e descuidada.
O sucesso único da EXPO é o Pavilhão Atlântico. Curiosamente, os habitantes desta paisagem apocalíptica e transitória parecem apreciar o "bairro" que de "bairro" nada tem.
Regressando a Barcelona, no final das Ramblas vemos o exemplo perfeito de como uma cidade se abraça à água e a um complexo comercial, o Mare Magnum, sem perder qualidade nem identidade. Junto às torres da beira-mar, que mostram como se pode construir em altura à beira-mar acrescentando beleza, espraia-se uma frente marítima cheia de restaurantes e esplanadas cheios quando faz um frio de rachar. E passeia-se sem interrupções durante quilómetros pela beira do Mediterrâneo.
Entre a marina da EXPO e a marina de Barcelona, vai toda a diferença entre planear uma cidade ou entregá-la à ganância dos especuladores imobiliários e do Porto de Lisboa.
A diferença entre alegrar uma cidade ou deixá-la nas mãos dos patos-bravos.
Não existe em Lisboa um grande mercado decente, uma zona comercial decente, um grande jardim decente.
E a EXPO falhou.
A zona oriental está melhor do que antes?
Sem dúvida, mas o projecto não era esse.
Era fazer, ali, um lugar que honrasse o rio e os lisboetas.
Clara Ferreira Alves
Expresso - 26-11-2007